

Os poemas de Allan Poe e a morte
Rebeca Lopes Ferreira França
A morte em Edgar Allan Poe é um tema que recebe muito interesse por parte dos norte-americanos, críticos acadêmicos ou não. Doutores, jornalistas, e até romancistas se propõem, aliás, a discutir o que levou o próprio escritor à morte. Poe foi descoberto inconsciente em 28 de setembro de 1849 em uma prancha de madeira fora do saloon de Ryan na Lombard Street em Baltimore. He was taken to Washington College Hospital (now Church Hospital). Ele foi levado para o Washington College Hospital , onde apresentou tremores e alucinações, e enfim coma. He emerged from the coma, was calm and lucid, but then lapsed again into a delirious state, became combative, and required restraint. Logo a seguir Edgar Allan saiu do coma, passando por um período de lucidez, mas reincidiu a um estado de delírio até sua morte no dia de sua internação. Entre supostas causas apontadas para o óbito, algumas são: abstinência do álcool, assassinato ou tumor cerebral. Recentemente o Dr. Benitez, do Centro Médico de Mariland University, defendeu que o poeta havia adquirido raiva, provavelmente de seus gatos de estimação (UMM, 2012).
O propósito deste trabalho, entretanto, não é levantar mais uma teoria sobre a morte do poeta. Visamos observar o conceito de morte nos poemas de Allan Poe, entendendo que este é um tema que obviamente não se limita à experiência do seu próprio autor.
A morte é um tema que possui em si mesma uma dimensão literária. Ela está presente na literatura desde a antiguidade clássica . Atualmente, o tema também vem conquistando a atenção de historiadores e literatos. O conceito de morte tem sido visto como uma oportunidade de detectar mudanças no comportamento de certas sociedades e culturas. Uma obra de referência neste sentido é o livro A morte no Ocidente, de Philippe Áries. Ele demonstra como o conceito de morte tem passado por transformações. As atitudes diante da morte nem sempre foram as mesmas. Ariés demonstra que as atitudes diante do ‘término da existência’ podem ser entendidas por meio de um conceito que vê morte como “domesticada”. Todavia, esta conceito se transforma em meio a um processo que se dirige para uma outra concepção, denominada “morte interdita”. Na Idade média a morte era familiar. Moribundos preparavam-se previamente para o seu encontro com a morte e crianças participavam normalmente dos ritos de enterro. A morte fazia parte da vida cotidiana. A partir da Idade Moderna inicia-se um processo de ocultação e estigmatização da morte. Então certas atitudes como ocultar do doente o diagnóstico de morte, e proibir cerimônias de enterro nas dependências d e igrejas católicas começam a aparecer.
Desta forma, analisar o conceito de morte em Edgar consiste em examinar algo que possui uma dimensão complexa, e não estático. Buscaremos, portanto, alcançar esta dimensão tendo por base os poemas “A cidade no Mar”, “Silêncio”, “Para Anne”, “Tarmaleão” e “Um Sonho dentro de um Sonho”. Outros poemas que também servirão de apoio são “The Visit of the Dead”, “O Vale das inquietudes”, e o ensaio o qual Poe descreve como sua maior obra, intitulado: “Eureka: ensaios sobre o universo material e espiritual”.
City in the Sea
No primeiro poema que examinaremos vamos encontrar a morte personificada. No poema “City in the Sea ”, a morte reina em uma cidade solitária no extremo oeste, onde são encontrados vários prédios construídos ao lado das águas melancolicas do mar. Ali, prevalece a noite, todavia a luz do mar brilha sobre as torres, enquanto a Morte olha para baixo de sua torre. Os túmulos estão abertos, mas nenhuma das suas riquezas tenta as águas tranqüilas. Então, subitamente, uma brisa faz um movimento no mar e suas aguas se levantam para inundar a cidade . Vejamos alguns trechos do poema:
Olhai a Morte edificou o seu trono
numa estranha cidade solitária
por entre as sombras do longínquo oeste
Lá, os bons os maus, os piores e os melhores,
Foram todos buscar repouso eterno .
Seus monumentos, catedrais e torres
(torres que o tempo não rói e não vacilam!)
em nada se parecem com os humanos.
(...)
E a Morte , do alto de soberba torre ,
Contempla gigantesca, o panorama.
Lá, os sepulcros e os templos se escancaram
Mesmo ao nível das águas luminosas;
mas não pode a riqueza portentosa
dos ídolos com olhos de diamante ,
nem das jóias que riem sobre os mortos,
tirar as vagas do seu leito imóvel;
pois, ai! Nem leve movimento ondula
esse imenso deserto cristalino! ( POE,1987, p. 50)
Neste poema a Morte está em evidência, e reina soberana. Para conferir este destaque dado à morte o poema afirma que a morte se encontra “do alto de soberba torre”, e se delicia contemplando o panorama que está diante dela. Do seu domínio ninguém pode escapar. Ela reina sobre “os bons os maus, os piores e os melhores”. A riqueza também não pode livrar os que a possuem do Seu domínio. Mas a morte, caracterizada como uma soberana, reina sobre um espaço vazio, um espaço sem movimento. Allan Poe não caracteriza a cidade da morte como um espaço místico por onde perambulam espíritos e fantasma. Os mortos se encontram repousando em seus jazidos. A cidade da morte é um lugar solitário no meio do mar, onde encontramos apenas o espaço vazio, silencioso. Bella Wang denomina este espaço apresentado como um ambiente de “paz mortal” (WANG, 2009). Poe contrasta os edifícios lotados e elaborados com a ausência de vida na cidade. Os mortos estão cobertos "alegremente de jóias", o que implica jovialidade, propsperidade e celebração; mas eles encontram-se em covas, covas abertas, sem nenhum movimento. Até mesmo as plantas não conferem vida ao local, pois apenas se constituem em imagens esculpidas no granito (9º. verso da 2º. estrofe). Aliás, o primeiro sinal de movimento no poema não acontece para reviver a cidade, mas a leva a afundar no mar.
Esta característica de apresentar a morte por meio de um espaço vazio também se encontra no poema o “O Vale das Inquietudes”:
O VALE DAS INQUIETUDES
Dantes, silente vale sorria.
Era um vale onde ninguém vivia.
Haviam todos partidos em guerra,
deixando os doces olhos de estrelas
noturnamente velarem pelas
flores formosas daquela terra,
em cujos braços, dia após dia,
à luz vermelha do sol dormia
( POE,1987, p. 59)
Neste poema, assim como no poema a Cidade da Morte, não existe movimento humano, apenas o espaço natural vazio.
A morte é percebida como uma dama soberana, mas não possui uma feição assustadora, ela não tão temida. Bella Wang chega a afirmar , a respeito do poema City of Death, que na inevitavel destruição da cidade da morte, esta aproxima-se mais a uma uma vítima lamentável do que a uma protagonista trágica.
Além disso no poema City of the Death, existe uma dissociação entre a morte e o inferno. Ao descrever a inundação da cidade pelo mar Poe distingue morte do inferno:
E quando, entre os gemidos sobre-humanos ,
a cidade submersa for fixar-se
No fundo[do mar], o Inferno, erguido de mil tronos,
curvar-se-á, referente.
( POE,1987, p. 59)
Bella Wang (WANG, 2009) interpreta esta referência à inundação da cidade como uma alegoria para a morte da alma humana, o que pode ser visto como um castigo pelo pecado. Ela afirma que a arquitetura aparentemente exótica e as riquezas dos mortos apontam para pecados que têm sua origem no amor às riqueza, e embora estes males não são definidos pelo poema, ela encontra imagens que sugerem corrupção. Assim, a submerssão da cidade no mar seria vista como uma descida ao inferno. Bella Wang ainda traça um paralelo entre este poema e o texto bíblico de Sodoma e Gomorra, onde as cidades pecadoras são destruídos por Deus (Gênesis 19).
Para avaliarmos melhor a interpretação de Bella Wang, bem como para ampliarmos nossa compreensão sobre o conceito de morte na poesia Poe, é necessário analisarmos um pouco mais da religiosidade nos textos de Poe.
Religiosidade: a morte e a alma
Uma compreensão mais clara a respeito da religiosidade de Poe vem do poema em prosa “Eureka: ensaios sobre o universo material e espiritual” . Neste texto existem declarações claras de que o ato da criação a partir do nada deve-se a uma divindade. Com respeito a noção de corpo e alma , o texto aponta para uma concepção onde a alma é dotada de uma existência que ultrapassa o corpo físico. Ainda assim, as opiniões eu-lírico distanciam-se completamente cristianismo ortodoxo, de forma Kenneth Hovey conclui que Poe, baseia-se na filosofia epicurista. Sua concepção entende que alma comprime um tipo de energia que é também material, tratando-se de uma forma superior de matéria (EAPOE, 2012).
Podemos apontar ainda outro elemento que demonstra como eu-lírico está distante da ortodoxia religiosa. Ele não busca sustentar suas concepções de Eureka baseando-se em pensamentos religiosos. Pelo contrário ele cita cientistas como Laplace Leibinitz e Newton (POE, 1987, p.218, 224, 225) para defender seus conceitos. De modo que, embora utilize Deus como ponta-pé inicial, ele busca princípios e leis para explicar o Universo. Poe elege termos como atração e repulsão, unidade e difusão(EAPOE, 2012), para explicar inclusive suas concepções sobre a alma. Na afirmação abaixo ele relaciona seus conceitos com a existência da alma:
Assim, os dois princípios propriamente ditos, Atração e Repulsão , o Material e o Espiritual , acompanha-se mutuamente na mais estreita confraternização , para sempre. E assim o corpo e a Alma caminham de mãos dados. ( POE, p.241 , 1987)
Neste texto o eu-lírico se utiliza de conceitos duais para defender sua concepção da alma. Partindo dos conceitos consagrados pela filosofia clássica de Empédocles (atração e repulsão),o texto afirma a existência do espiritual, e posteriormente da alma. Esta mesma busca por conceitos duais é percebido em outro poema de Poe sobre a morte:
SILÊNCIO
Há qualidades incorpóreas, de existência
dupla, nas quais segunda vida se produz,
como a entidade dual da matéria e da luz,
de que o sólido e a sombra espelham evidência
Há pois, duplo silêncio; do mar e o da praia,
do corpo e da alma; um, mora em deserta região
que erva recente cubra e onde, solene atraia
lastimoso saber; onde recordação
o dispa de terror; seu nome é “nunca mais”;
é o silêncio corpóreo. A esse não temais!
Nenhum poder do mal ele tem. Mas, se uma hora
um destino precoce (oh, destinos fatais!)
vos levar às regiões soturnas, que apavora
sua sobre, elfo sem nome, ali onde humana palma
jamais pisou, a Deus recomendai vossa alma!
( POE, p.54 , 1987)
Neste texto Poe novamente buscou agrupar conceitos duplos da natureza para apontar a realidade da alma. Assim, ele fala do sólido e sombra, mar e praia como elementos que apontam para o corpo e alma, matéria e luz (semelhante a afirmação que fez no texto Eureka, onde mencionou o material e espiritual) .Por outro lado, ao apresentar a existência da alma, o poema Silêncio nos oferece um conceito em que a Morte é apenas o “silêncio corpóreo”, e por isso não deve ser temida.
A morte domada
. Neste poema os conceitos de morte retomam a concepção da morte domada que vinha desde a idade média e atravessou o século XIX. Desde os romances cavalheirescos até o século XIX os indivíduos tomam consciência da aproximação da própria morte. Não existe uma negação da gravidade do estado do moribundo, mas a chegada da morte é admitida (ARIÉS, 2003, p.25-34)
Seja por premonição natural, ou na maioria dos casos, por consciência íntima, os indivíduos percebem que o encontro com a morte chegou. O sujeito não tem pressa de morrer, mas quando se encontra com a morte, ela é tratada com naturalidade, sem gestos dramáticos. Na obra de Tolstoi encontramos um velho com dores junto a um fogão. Diante desta cena uma mulher lhe pergunta o que está acontecendo. E o velho responde com naturalidade: “A morte está presente, eis o que há” (TOLSTÓI, apud Áries , 2003 p.30 ) Esta atitude , segundo Phillip Áries, é comum neste período. A morte é “domada” e não se desespera diante da previsão de sua chegada, o que de fato teme-se é morrer sem ser avisado a tempo.
Não se morre pois sem ter tido tempo para saber que vai morrer. Ou se trataria da morte terrível, como a peste ou morte súbita, que deveria ser apresentada como excepcional, não sendo mencionada. (ÁRIES, 2003, p.27)
As considerações de Phillipe Áries também iluminam os últimos trechos do poema Silêncio. Ao “silêncio corpóreo”, diz Poe, não se deve temer. Mas, sim a “um destino precoce”, um “destino fatal”, o que pode ser entendido como um destino inesperado que impediria o moribundo de cumprir os ritos para esperar a chegada da morte. Os ritos da morte eram caracterizados e cumpridos com simplicidade e aceitação por parte do indivíduo, e não por emoção excessiva. Mas, cabia a estes ritos o papel de levar o indivíduo a tratar a morte com aceitação . Se um moribundo negasse ou zombasse do seu estado cabia ao padre fazê-lo retornar à sua real situação.
Tarmaleão e os ritos que precedem a morte
Phillipe Áries cita três ritos essenciais para esperar a morte. E dentre estes três, dois podem ser encontrados no poema Tarmaleão de Allan Poe. Historicamente, Tamaleão foi um governante do século XIV que fundou um império na Ásia central. Poe aproveita a idéia romântica do conquistador famoso para escrever uma marcante confissão no leito de morte de Tamerlão. Embora Tamerlão tenha sido muçulmano, o poema lhe configura com uma religiosidade ocidental de modo que ele confessa seus pecados de juventude a um padre católico. Nesta confissão Tarmaleão se apresenta como um homem de espírito triunfante, que mesmo “sendo filho do lodo” alcançou o poder. Ele tinha prazer nas batalhas e vitórias, e se alegrava com o louvor dos homens. No entanto, em sua juventude, ele se apaixonou por uma mulher de quem ele se esqueceu devido a sua ambição pelo poder. Agora, no leito de sua morte ele se lamenta por ter se esquecido da mulher que merecia o seu amor.
O próprio tema de Tarmaleão, o lamento das escolhas feitas na vida e a confissão de pecados, são ritos importantes para preceder a morte. Segundo Áries o primeiro ato do ritual consistia num lamento da vida (ÁRIES, 2003 p. 33,34). Cabia ao moribundo se relembrar com nostalgia de fatos importantes de sua vida. Assim, Tarmaleão faz muitas referências a sua juventude, à mulher amada que conheceu, e às impressões que as vitórias tinham em seu espírito. Além disso, Tarmaleão faz referências ao seus pecados, destacando por exemplo o “sobre-humano orgulho” que possuía. A confissão de pedados seria o segundo rito necessário para esperar a morte.
A presença da oração como um elemento importante para o encontro da morte, também se encontra presente no poema Visit of the dead:
Thy soul shall find itself alone
Alone of all on earth – unknown
The cause – but none are near to pry
Into thine hour of secrecy
Be silent in that solitude
Which in not loneliness – for then
The spirits of the dead, who stood
In life before thee, are again
In death around the, an their will
Shall then o’ ershadow thee – be still ( POE, 1827, p.27,28)
Porém, no poema Tarmaleão existe ainda uma ausência significativa de dos ritos da morte. Segundo Áries, após o lamento pela vida e a confissão dos pecados, cabia ao moribundo receber a absolvição sacramental. Tarmaleão menciona esta absolvição, mas a rejeita. Tarmaleão diz ao padre que não acredita que um “poder terreno”(POE, 1987, p.23), o padre, possa lhe libertar do pecado, e acredita que esta esperança vem apenas de Deus.
Ainda assim, em meio a estes ritos de lamento pela vida e confissão, Tarmaleão pode enxergar a morte com aceitação. Ele afirma:
Eu creio, Padre, eu firmemente creio,
e bem SEI – pois a morte, que me veio
da longínqua região abençoada,
onde não mais existem ilusões ,
vai entreabrindo os rígidos portões
e cintilam os raios da verdade,
que não vês através da Eternidade ...
( POE, 1987, p.29, grifo original)
O que podemos observar até aqui é que o conceito de morte caminha numa direção comum, e se aproximam daquilo que Phillippe Áries apresenta como a “morte domada”, que é tão marcante num momento histórico que atravessa barreiras geográficas e religiosas. Ela está presente tanto na Europa Ocidental católica como nso Estados Unidos protestante, tanto entre cristãos convictos como entre os mencheviques ateus, e no presente caso, também envolve um eu-lírico que aparentemente tem convicções religiosas peculiares (ÁRIES, 2003, p.80).
Contudo, ainda é importante examinar dois poemas em que o romantismo negro de Poe vai além da concepção de morte domada, e até mesmo a nega.
For Annie: a morte desejável
A referência à morte também se encontra presente no poema For Annie. Este é um poema de difícil compreensão e que desperta interpretações contraditórias. Frederic S. Frank e Anthony Magistrale defendem que Annie é uma mulher amada que está morrendo e que mesmo neste momento cerca o eu-lírico de carinho (FRANK, 1997, p. 22).
Para Pamela Moore, que apresenta o pensamento de Houghton Mifflin ( MOORE, 2012), o moribundo é o próprio eu-lírico, que dá graças porque a vida, sua "doença prolongada", finalmente acabou. Nesta interpretação, Annie é a amante que lamenta a sua morte. Mas o moribundo declara que o seu coração e seus pensamentos estão mais vivos , eles estão preenchidos com a visão do amor de Annie. Apesar de morto, ele vive por causa de seu amor. O morimbundo afirma está além da dor e do sofrimento, e não deseja a compaixão dos vivos. Pois todos irão deitar em uma cama semelhante. Embora o seu corpo esteja morto, para este moribundo sua mente e coração estão vivos.
Nos limites deste artigo adotaremos a interpretação de Hougton – Ao adotarmos sua interpretação, não o fazemos considerando que sua explanação põe fim a complexidade do poema. Porém, acreditamos que a interpretação de Houghton é mais textualmente fundamentada. Houghton relaciona esta poema ao conto Os Fatos no Caso de M. Valdemar.
Neste conto , um moribundo, Valdemar, é colocado sobre o efeito de hipnose até o encontro com a morte. Sob o estado de hipnose, o morto é capaz de conversar com o narrador do conto – o médico que realizou a hipnose. Ele afirma : Eu estou morto. Após alguns meses os médicos envolvidos na experiência resolvem retirar o morto da estado de hipnose. Durante este processo o contato verbal com o morto se restabelece, e Valdemar pede aos médicos que o deixem dormindo porque ele está morto. Quando finalmente o Valdemar sai do estado de transe , e seu corpo se transforma numa " nearly liquid mass of loathsome-of detestable putridity" (SCHNECK, 2012).
Este conto demonstra que a possibilidade de um morto narrar sua experiência para os vivos encontra-se presente no pensamento do eu-lírico. Estas considerações lançam uma perspectiva sobre os primeiros versos do poema :
Graças a Deus! A crise,
o perigo passou!
O mal languidescente
afinal se acabou.
E essa febre chamada
vida se conquistou!
Tristemente me sinto
das forças despojado
e músculo algum posso
mover, assim deitado.
Mas que importa? Prefiro
ficar assim deitado.
E em meu leito descanso,
com tamanho conforto
que, ao ver-me, poderiam
imaginar-me morto;
talvez estremecessem,
como quem olha um morto.
Gemidos e lamentos,
suspiros e aflição
agora se acalmaram,
com a palpitação
cruel no meu peito. Horrível
essa palpitação!
O mal-estar, a náusea,
a impiedosa agonia,
tudo se foi, com a febre
que a mente enlouquecia:
febre chamada vida,
que em meu cérebro ardia.
( POE, p. 76-77, 1987)
Entendendo este trecho como um relato de um morimbundo percebemos que , conforme apontou Houghton (MOORE, 2012), a vida é percebida como uma doença, e morte seria vista como a cura para esta doença.
Porém ainda que não interpretássemos este poema como uma relato de um morto, poderiamos encontrar trechos que apresentam explicitamente a morte não apenas como um evento aceitável, mas desejável, posto que proporciona descanso.
E, ah! Nunca loucamente
se diga e seja aceito
que é sombrio o meu quarto
e apertado o meu leito,
pois nunca o homem descansa
em diferente leito.
Para dormir, deita-vos
Em semelhante leito.
Nele, a alma supliciada
Dorme, sem dolorosas
Recordações, não tendo
mais saudades das rosas,
das velhas inquietudes
dos seus mirtos e rosas.
E aqui jazendo, o espírito,
tão calmo e satisfeito,
crê que o cerca um mais santo
odor de amor-perfeito,
odor de rosmaninho
misto de amor-perfeito
de malva, do belíssimo
e puro amor-perfeito.
E assim feliz repousa,
mergulhado em perene
sonho de lealdade
(...) (Poe, 1987,p. 77,78)
Nestes trechos mais uma vez a morte recebe um traje que a pacífica. Na primeira estrofe citada o poeta afirma que o seu estado não é digno de pena por parte dos demais, pois todos terão o mesmo destino. Além disso, o poema prossegue afirmando que a morte é um momento de descanso onde não existem mais preocupações dolorosas apenas tranqüilidade e satisfação. No caso específico do poeta este estado será acompanhado de um sonho com sua amada (últimas estrofes).
Dream with a Dream
Mas, apesar de todo destaque que a morte recebe nestes poemas, ainda é possível encontrar em Poe um poema contraditório. O poema de Dream with a Dream não celebra a morte, mas a lamenta:
Este beijo em tua fronte deponho!
Vou partir. E bem pode, quem parte,
francamente aqui vir confessar-te
que bastante razão tinhas, quando
comparaste meus dias a um sonho.
Se a esperança se vai, esvoaçando,
que me importa se é noite ou se é dia...
entre real ou visão fugidia?
De maneira qualquer fugiria.
O que vejo, o que sou e suponho
não é mais do que um sonho num sonho.
Fico em meio ao clamor, que se alteia
de uma praia, que a vaga tortura.
Minha mão grãos de areia segura
com bem força, que é de ouro essa areia.
São tão poucos! Mas, fogem-me, pelos
dedos, para a profunda água escura.
Os meus olhos se inundam de pranto.
Oh! meu Deus! E não posso retê-los,
se os aperto na mão, tanto e tanto?
Ah! meu Deus! E não posso salvar
um ao menos da fúria do mar?
O que vejo, o que sou e suponho
será apenas um sonho num sonho?
(Poe, 1987,p. 52, 53)
Note-se que neste poema a morte não é descrita simplesmente como um fim da existência que deve ser aceito com naturalidade. Trata-se antes de uma finitude da existência que diminui o significado da própria existência. Existem duas figuras utilizadas para expressar este sentido da vida. A vida , e o próprio ser do poeta “ não é mais do que um sonho num sonho”. Os pequenos grãos de areias que não podem escapar da fúria do mar são outra ilustração para vida , enquanto a morte se torna a “vaga que tortura” . Além disso, nota que o poema possui palavras fortes, como "Ó Deus!" e exclamações angustiada para refletir o tormento na alma do narrador.
Os meus olhos se inundam de pranto.
Oh! meu Deus! E não posso retê-los,
se os aperto na mão, tanto e tanto?
Ah! meu Deus! E não posso salvar
um ao menos da fúria do mar?
O que vejo, o que sou e suponho
será apenas um sonho num sonho?
( POE, 1987, p.52,53)
Neste poema, como em outros textos de Poe, o mar se torna uma imagem para apresentar a morte e decadência. No poema the City of death já encontramos a imagem de um mar impiedoso. Não existe nada que o narrador posssa fazer para salvar os grãos de arei da fúria do mar. A ligação do mar com a morte também se encontra em outros poemas como a Cidade do Mar, Annabel Lee. Perpassa a idéia de que do mar como um elemento dotado de uma força capaz de arrastar e esconder a todos. Na literatura judaica o mar novamente aparece com uma ligação marcante com o mar( NAVE, 1945, p. 1244).
Mas, a figura da areia e do mar não tem o mesmo destaque que a figura do sonho. A frase “ um sonho dentro de um sonho” destaca o grau de ilusão que se caracteriza a vida. Se o eu-lírico descreve a vida como um sonho , isto já seria uma ênfase de sua efemeridade, mas Poe destaca que a vida é um sonho dentro de um sonho, conferindo à vida uma aspecto ainda mais ilusório. Além disso Poe chama a atenção para dois aspectos da realidade: "tudo o que vemos ou parecem". Nesta frase frase "tudo o que vemos" é um aspecto externo da realidade e "tudo o que parece" é o elemento interno. Poe trabalha este aspectos com aliteração (WANG, 2009) afirmando que ambos os lados são "um sonho dentro de um sonho".
Esta setença do poema se aproxima muito da literatura sapiencial, em particular do livro de Kolet . Este livro da literatura judaica antiga apresenta a vida e a morte com uma aliteração. Logo no início do livro encontramos a frase: “ vaidade de vaidades , diz o pregador; vaidade de vaidades, tudo é vaidade. No decorrer do livro vários eventos da vida são descrito com o mesmo termo. Este livro também se encerra com uma apresentação da chegada da morte: “... e o pó volte à terra, como era, e o espírito volte a Deus, que o deu. Vaidade de vaidades diz o pregador, tudo é vaidade” ( Eclesiástes 12.7-8). É possível que aliteração em Kolet , assim como no poema The Dream with a Dream , sirva para enfatizar o carater repetivo e inexorável da relação vida e morte.
Ainda é possível traçar uma outra relação entre Kolet e a aliteração que encontramos em Poe. Ambas as aliterações se formam um objeto inserido dentro dele mesmo. No poema de Poe encontramos “ um sonho dentro de um sonho”, em Kolet vaidade de vaidades. O termo original hebraico se torna ainda mais significativo do que sua tradução no português. O termo hebraico original para vaidade de vaidades é habel habalim (KOLET, 1971), o significado original de habel "folego" ou "vapor" ", e a expressão seria melhor traduzida por vapor de vapores. O reflexo de um elemento não palpável (sonho, ou vapor) sobre si mesmo serve para destacar o grau de abstração que caracteriza a vida.
Considerações finais
O conceito de morte sofre transformações. Ela parte de um período onde a morte era “familiar” e “domada” para um momento onde a morte tende a ser escondida . Edgar Allan Poe se encontra em meio a este processo que caminha para a ocultação da morte. Mas, apesar disto, a morte se destaca e se mostra claramente em seus poemas, sendo apresentada com diferentes faces.
A morte pode ser descrita como uma dama soberana, mas esta dama não pronuncia palavras amedrontadoras ao seres vivos. Pelo contrário ela é caracterizada por um silêncio, trata-se apenas “silêncio corpóreo”. Se o indivíduo se prepara para o seu encontro ele pode caminhar em sua direção sem gritos e choro. Ainda que Bella Wang encontre nos poemas de Poe uma referência ao inferno e ao castigo pelos pecados, esta referência não é aterrorizante. Poe não apresenta moribundos desesperados e gritando porque não desejam ir para o inferno, ele descreve indivíduos lamentando pela vida que tiveram e esperando pela chegada da morte.
Como vimos esta dimensão do conceito de morte apresentada nos poemas de Allan Poe se aproxima do conceito que Áries definiu como “morte domada”. Mas o eu-lírico é capaz de ir além do conceito de morte domada. Ele é capaz de apresenta a morte como um momento desejável. Um descanso para a vida febril. Sua poesia também é capaz de abarcar conceitos contraditórios a “morte domada”. Ela pode expressar a desespero diante da efemeridade da vida. Ele apresenta este aspecto com a bela expressão “ um sonho dentro de um sonho” . Uma sentença que nos remete à literatura sapiencial consagrada durante milênios, capaz caracterizar a vida com grande abstração.
Mas, existe uma outra visão da morte nos poemas de Allan Poe que seria útil para futuras pesquisas. Trata-se da visão da morte como lembrança amarga da qual não se pode escapar. Vamos observar este conceito freqüentemente relacionado ao tema da morte feminina. Ele surge nos poema Annabel Lee, Ulalume e no famoso poema O Corvo, onde um animal inanimado surge diante do poeta repetindo insistentemente a sentença “nunca mais” never more), numa referência a morte de uma mulher amada . Tradicionalmente, poemas como estes tem sido relacionados a morte de mulheres próximas a Allan Poe, como por exemplo, sua esposa Virgínia Cleemm, que faleceu com apenas 24 anos. Mas, seria enriquecedor analisar a morte feminina em Allan Poe buscando a dimensão literária que o tema da morte feminina pode oferecer.
Referências
POE, Edgar Allan. Poemas e Ensaios. Globo, Rio de Janeiro ,1987.
ARIÉS, Philippe. A história da morte no Ocidente. Da Idade Média aos nossos dias. Rio de Janeiro : Ediouro, 2003.
WANG, Bella .Poe’s Poetry. Classic Notes. United States of America: GradeSaver LLC, 2009. Disponível em: http://www.gradesaver.com/poes-poetry/study-guide/section12/ . Acesso em 10 de janeiro de 2012.
FRANK, Frederic , e MAGISTRALE, Tony. The Poe encyclopedia. Westport: Greenwood Publishing Group, 1997 (USA).
KOLET. In: Hebrew Bible. Tel-Aviv. 1971.
MOORA, Pamela . For Annie. Literature Anotations. New York University, 1994. Disponível em: <http://litmed.med.nyu.edu/Annotation?action=view&annid=274V> Acesso me 20 de janeiro de 2012.
NAVE, Orville J. Nave’s Topical Bible. Chicago: Moody Press, 1945, p. 1244.
EAPOE. Edgar Allan Poe Society of Baltimore. Disponível em : < http://www.eapoe.org/index.htm > Acesso em 11 de dezembro de 2011.
UMMC - University of Maryland Medical Center. Edgar Alla Poe Mystery . University of Maryland Medical Center, Greene Street, Baltimore. Disponível in: <http://www.umm.edu/news/releases/news-releases-17.htm> Acesso em 15 de fev. de 2012.
SCHNECK, Jerome. A medica Addendum Hypnotherapeutic to the Case of M. Valdemar. Disponível em: < http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC199634/pdf/mlab00228-0042.pdf > Acesso em : 10 de janeiro de 2012.
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